domingo, 20 de maio de 2007

Um caso que tornou reais os nossos fantasmas

Inês Cardoso

De repente, porque o perigo entra sem bater à porta, o "papão" deixou as músicas de embalar e mostrou que existe. E Madeleine, a menina de quatro anos que as fotografias mostram sorridente, foi arrancada do seu mundo e tornou-se a representação dos nossos medos colectivos. Um fenómeno mediático mundial que psicólogos e sociólogos explicam, antes de mais, com essa facilidade de nos identificarmos com a família McCann poderia ter acontecido a qualquer um de nós.

No caso de Maddie, conjugam-se, na opinião de investigadores, diversos factores que suportam duas semanas de focalização extrema. Carlos Poiares, especialista em Psicologia Criminal da Universidade Lusófona, começa por destacar "o facto de se tratar de uma criança" e de a associação a redes pedófilas "ter sido muito vincada desde o início", despertando uma das representações mais negras na sociedade contemporânea.O acontecimento decorre, acrescenta o psicólogo Eduardo Sá , numa "atmosfera classe média-alta". Que faz com que a opinião pública "se identifique muito mais facilmente com as vítimas do que com uma família paupérrima do Norte, a quem é roubado um bebé na maternidade".

E se Maddie fosse portuguesa? Ninguém tem dúvidas de que as duas últimas semanas teriam sido bem diferentes. Carlos Poiares destaca o facto de Portugal ter "dos indicadores de criminalidade mais baixos da Europa", o que contribuiu quer para o alarme - que deu a um episódio a dimensão de um surto -, quer para a "reacção empolada da Comunicação Social inglesa".

Agravada, acrescenta Ana Horta, investigadora do Observatório da Comunicação e doutorada em Sociologia da Comunicação, pelo "etnocentrismo britânico". Ou seja, "os tablóides ingleses exploraram à exaustão acusações de ineficácia da Polícia, alegada incapacidade de um país que consideram menos desenvolvido". No papel confortável de quem dá voz "a cidadãos vítimas" e de quem, além do mais, se sente com poder para ameaçar a conhecida dependência do Algarve no turismo.

Acusações mútuas

Num momento inicial, Carlos Poaires salienta ter havido uma troca mútua de acusações. "Quando a Imprensa britânica empolou o assunto, houve a reacção imediata dos media portugueses de dizerem que o raptor era um cidadão estrangeiro", recorda. Como um mecanismo de defesa instintivo "Os portugueses são bons, os maus têm de ser estrangeiros".

Um cenário de visões dualistas e ambivalentes que Ana Horta vê replicado a outros níveis. Como na polémica que rodeou os pais, em que a acusação de negligência e o seu papel como vítimas entraram em choque. Conseguindo simultaneamente superar as críticas iniciais e projectar a imagem de Madeleine em todo o mundo, a investigadora considera que "a família McCann teve uma grande capacidade para mobilizar os media".

"A família tem sabido criar empatia com as pessoas, em coisas simples como mostrar os bonecos de Madeleine ou divulgar fotografias tocantes", sustenta Ana Horta.

Para quem "não é nada irrelevante" o facto de Maddie ser bonita e fotogénica. "Até a foto da família que tem sido divulgada parece de uma família ideal. Produz um efeito de identificação e escândalo com o sucedido", comenta.

Escândalo, porque suscita a sensação de que "os estados têm sido inoperantes face a redes internacionais de pedofilia", explica Eduardo Sá. O que inquieta é percebermos que "todos nós somos de uma vulnerabilidade desconcertante". Uma vulnerabilidade simbolicamente marcada pelo facto de Madeleine ter sido levada durante o sono.

Duas imagens de uso popular são apontadas para personificar esse medo. O "papão", a quem se pede para deixar o sono das crianças sem sobressaltos, e o "homem do saco", que educadores apontam como ameaça para quem se porta mal. Fantasma que este caso "tornou exequível", lembra Eduardo Sá.

Efeito bola de neve

Cozinhados todos os factores, o fenómeno foi-se alimentando como uma bola de neve. Ou não seja o fenómeno mediático "cada vez mais planetário", como lembra o psicólogo Rui Abrunhosa Gonçalves, da Universidade do Minho. Bola de neve empurrada por figuras públicas - particularmente jogadores de futebol, mas também personalidades como a escritora JK Rowlings -, pela Internet e pelo empenho de gente anónima.

Aliás, também a população se mobilizou de forma sem precedentes, até com risco de destruir provas e prejudicar a investigação, como alerta Carlos Poiares. "Pareciam os tempos do PREC, com o cerco às auto-estradas", ironiza, referindo-se ao tempo conturbado que se seguiu ao 25 de Abril. "Foi um perigo, que a PJ não deveria ter permitido", sustenta, para logo a seguir salientar que com isso não pretende pôr em causa a eficiência da intervenção policial.

A voragem da bola de neve irá durar até quando? O momento exacto ninguém sabe, mas a tendência de desaceleração é inevitável. Se bem que este caso, defende Carlos Poiares, ficará durante muito tempo como um marco. "Até em termos de meios". Ana Horta concorda. "No futuro, será muito difícil à polícia justificar um empenho de meios com menor visibilidade".

http://jn.sapo.pt/2007/05/20/tema_de_domingo/um_caso_tornou_reais_nossos_fantasma.html

1 comentário:

bela lugosi`s dead (F.JSAL) disse...

este post toca vários aspectos, bastantes mesmo, por isso vou apenas dizer que o acho interessante não só pela leitura, mas também por partilhar de grande parte dos pontos de vista expostos. Não sendo daquele tipo de pessoa miserabilista relativamente ao que é ser português, acho todavia que algumas pessoas se portam como miúdos pra depois receberem um chupa dos papás, com a diferença de que nem os ingleses são pais, nem os portugueses são seus filhos. A verdade é que a pressão inglesa acabou por influenciar a postura da judiciária, dos órgãos de comunicação social e de muitos portugueses. Isso eu acho lamentável. Condenando este tipo de actos relativamente a crianças, devo dizer que a criança inglesa e seus pais, já tiveram mais tempo de antena na imprensa escrita e televisiva portuguesa, que muitos casos igualmente dramáticos, passados com crianças portuguesas, todos juntos e isso acho de uma subserviência miserável. Não é o facto objectivamente considerado que faz espoletar uma reácção emocional em cadeia, mas sim factores subjectivos, entre eles dinâmicas de poder, relações de supra e infraordenação, poder económico das nacionalidades envolvidas, etc.